A chuva e a porta
Antonio Miranda Fernandes
A chuva desce em andamentos perpétuos
Numa rede descontínua de queda lenta de gotas.
Bagos de luzes do lampião sob o beiral sombrio.
A chuva debruça sobre os cotovelos e se olha
No reflexo com ondulações femininas.
Eu devaneio que anjos lavam as constelações.
Madeixa toscamente entrelaçada de aparas,
Espatifa-se no chão espirrando estrelas
Para as paredes de reboco musgoso.
Sobre a soleira de granito da porta a chuva
Corre de lado indo para os cantos.
Lá, estancada pelos batentes, a água escorre
Para a calçada de pedra.
Parece uma toalha bordada com diamantes,
Enrugada para o lado.
Ou um vestido sendo puxado por folhas de luz.
Os pensamentos buscam poemas distantes,
E fazem-me recordar ruídos dos crustáceos
Atacando os cascos dos barcos em repouso.
Meu olhar hipnotizado pinta quadro surrealista
De relojoaria onde os relógios estão bêbados
Com os ponteiros descompassados
Sem dar importância a rigorosidade do tempo.
O concerto delicado, embora sem monotonia,
Fazem-me os sentidos cansados e sonolentos.
Então para evaporar a chuva da atenção,
Empunho o nó de porcelana da porta,
E a puxo, pelo ventre, de encontro ao meu peito.
Ela, guardiã, estremece rangido de satisfação.
No instante em que tenho nos braços a alma
Da árvore no seu tempo vegetal coarctado...
No corpo-a-corpo em que o passo se detém
Por um instante para virar a chave do mistério,
Vejo um casal que se despede além do visor.
O corpo se acomoda inteiro dentro do útero
De segurança ao ouvir o estalido da lingüeta da
Fechadura, um pouco acima do silêncio,
Cerrando a noite fria da chuva do lado de fora.
Dentro do aposento, aromas familiares de
Meiguices e acalantos necessários.
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