De vez em quando
desligo
Antonio Miranda Fernandes
De vez em quando me desligo.
Desligo-me das coisas tal qual são certinhas.
Olho as flores de março como fossem diferentes
Das flores de março do ano passado.
Fujo da pasmaceira com os meus ensaios,
De esquecer... de rolar... e viver descontente,
Não verdadeiramente realistas.
Apenas necessária mentira como novela da TV...
Das mulheres vestidas dos lares de camas vazias,
Das nuas investidas de consumo nas ruas,
Homens machões de todas elas nos bares,
Das intrigas, das brigas, dos reis nas barrigas,
Dos bígamos, dos trígamos, dos ausentes.
Ando sem chinelos pelos cômodos vagos,
Deixo a camisa e as normas nas gavetas da cômoda,
No cantar do banho frio sob o chuveiro.
Depois esqueço o corpo meio molhado na esteira,
E, desocupado de pensamentos, desligo.
De vez em quando me desligo
Das coisas de fora, de agora, de ontem, do mofo,
E no estofo da preguiça me deixo parado,
Minutos em horas, horas em dias, dias á toa,
Sorrio para a rara sorte de interromper,
A meu bel-prazer,
Os dias redondos, estofados da sensaboria
De encher linguiça.
E antes que vire também mesmice,
Volto como acordasse de um sonho induzido,
A ouvir as rabugices da velhice do mar,
Os pipilares das gaivotas flechando manjubas,
Os pesqueiros demandando a barra,
A farra da chuva na piscina,
O vozerio das pessoas que passam,
As portas que batem embaixo ou em cima,
Alguém que assovia além da minha janela,
O oco interesse em quererem saber
Como tenho passado... como anda minha vida...
Sinto-me outra vez incrustado no mundo.
Regresso apenas mais um,
Mas tenho guardado a sete chaves o segredo.
Quando as chatices se fazem cansativas,
Além da tolerância normal para aborrecimento,
Descalço os chinelos,
Tiro as roupas, tomo um banho demorado,
E me jogo, ainda meio molhado, na esteira,
E por brincadeira,
Simplesmente deixo de viver por algum tempo.