Enxurrada
Antonio Miranda Fernandes
Muito há a dizer, mas nada sinto de poesia nestes últimos dias.
Nem lamentos...
Apenas raiva...
Violentamente irritado...
Estou como uma palavra viva presa dentro de um cubo de papel,
De paredes imaginárias, nas quais ela não pode se apoiar.
Dor.
E se dor pode ser mais que apenas dor...
Toda a dor do mundo.
Existo cada vez menos diante do sofrimento.
Vejo o que persiste em mim,
Nu e anônimo, no chão da impotência,
E despenho no meu próprio peito...
Nas lágrimas de desespero de cada sobrevivente...
E no horror de cada olhar atônito...
Calo-me para não ouvir explicações cruéis de bocas gananciosas
Pregando fatalismos religiosos.
Este dia, que mais parece “todos os dias”, a voz talha o sofrimento da palavra.
É como um formão impiedoso que sangra a alma da madeira
Para produzir fugazes cavacos sem almejar entalhado que valha a pena.
O monstro transmudado em enxurrada num roldão faminto,
Devora pessoas, animais, árvores, sonhos...
Sonhos...
Um amontoado de coisas...
Até a fumaça do bule de café que jazia sobre o fogão de lenha...
Até os gomos de lingüiça que sobre ele defumavam...
O galinheiro...
A horta...
A enxada...
Como não bastasse,
Come, ainda, a própria lama na voracidade da barragem rompida...
Sabemos a nascente...
Sem precisarmos fazer cavoucos profundos,
Mas é difícil pensar em vingança...
E tampouco importa neste momento.
Olho o abismo e sinto o cheiro da devastação em tempo de paz...
Vivo a indignação da morte,
De cada vida soterrada.
Parecem ecoar nos ventos os gemidos das almas cobertas com terra...
Sou mais um solidário, como está a Nação.
Continuo na trajetória para o interior do silêncio.
Não sei rezar...
E já faz tempo perdi a fé na força de xingar...
Então me calo aguardando a chegada da aceitação...
Do esquecimento...
Vindo da sobreposição de desgraça sobre desgraça...
Já vivemos tantas...
E certamente, entre os parênteses do descaso, virão outras tantas...
O pranto nem secou ainda e já se fala no risco de uma outra enxurrada...
E de outra...
E mais outra...