No fundo do lodo
Antonio Miranda Fernandes
O verso tendo todo o tempo do mundo para dispor-se,
Estendeu-se célere até o comprimento da linha,
E impaciente virou a página para outros horizontes
Antes de juntar todas as letras em novas palavras.
Ele devia ter esperado o fluir normal do sentir
E assim ouvir a certeza do outro lado do cuidado.
O poema deixou-se criar na pressa do carpinteiro,
Nos dentes de aço da serra e no fio do machado.
Lascas de madeira caídas no chão do estaleiro...
Desgastes arrancados a fazer contornos sem retornos.
A criatura parida da árvore ruída e amputada nasceu...
Ela jamais voltaria a ser o antes da lamina da enxó.
A nau solta das amarras antes que se fizesse bonança,
Ainda criança, nas incertezas da própria sorte,
Foi ferida de morte nas rochas da foz e é pranto só,
Agonizante de ventre aberto a ranger tabuas na dor,
Dos sonhos de aventuras enterradas no fundo do lodo,
Para matar a fome das cracas no finalizar do funeral.
Restará no peito do marinheiro um vazio sem eco...
Talvez uma talhada lembrança despregada do todo,
Tal grasnar dorido do albatroz com o vôo quebrado.
Um rugido que não será ouvido, de qualquer modo...
E ainda o sofrimento de um poema sem sentido...
Por fim o estertor do canto abatido ainda inacabado...