Alforriado
Antonio Miranda Fernandes

Por vezes,
Quando devaneio com o mar a beijar-me os pés,
E tenho o pensamento a sorrir como alforriado
Que degusta os primeiros passos da liberdade,
Sem que um Senhor de qualquer fé,
Morda-lhe a liberdade até os ossos dela.
Ainda com as marcas da calceta do medo
Imposta pelo salso que me corre nas veias,
Ajoelho-me!

Ajoelho-me,
Não com a submissão do desesperançado,
Ou do esmoler que estende a mão a alguém
Mostrando-lhe as feridas do corpo
Que se fizeram quase sempre por descuidado.
Pego um punhado de areia e aperto-a,
E deixo-me nos afagos da fera que lambe a cria.

Aí se contém,
Em cada grão,
As almas daqueles que navegaram no útero
Do mundo e pintaram os matizes dos mares.
Então...
Acolá do contorno e dos limites da ilha que sou,
Sinto o cheiro e o sabor da minha terra...
Das minhas raízes...
Dos seios que me deram de mamar,
E ampararam os rumos do meu primeiro barco.

Reconheço-me em paz,
E liberto a areia a escorrer entre os dedos,
Tal qual ampulheta suspensa nos astros
Medindo um tempo além da minha vontade.
Como quem liberta o albatroz dentro de nós
A alçar voo para a mais longa das viagens,
Deixo-me ir como marionete sem entender
Quem segura os cordéis.
Na verdade não importa já que tem de ser assim.

Ouço,
Sem espanto e sem urgência o sibilar da escarpa,
Antes do abandono,
Acontecer o milagre dos cânticos marinheiros
A escorrerem da fonte escavada em mim.
Algo livre, mais forte e além da minha filáucia,
E sinto a vida como nunca houvera antes,
Plena...
E isso absolutamente basta.