Filhas do flagelo
Antônio Miranda Fernandes

Esta é minha morada que nunca teve janela,
nem mesa. Duas latas. Nunca teve panela.
Pau-a-pique, e cobertura de palha pouca tem.
Porta? Jardim? Alegria? Nunca teve também.
No pó braseiro da caatinga ela foi erguida
E de querença herança querente recebida.

Sou cria vingada de fêmea emprenhada
ao acaso do descaso sem nenhum intento,
numa rede encardida de zombaria paga,
depois partejada entre urros e lamentos.

Brotada indesejada de pouca serventia
pras duras lidas da vida quase sem valia.
Sorte mesmo era se o rebento viesse homem,
mas vim valendo menos que acha de lenha, 
com sina marcada tal vaca pra viver prenha
parindo, ainda, mais filhos da seca e da fome!

Tivesse a Deus sobrado alguma caridade
tinha eu nascida de morte bem morrida, 
enterrada e sumida no perdão da fatalidade
e não vir prostituta de prostituta parida,
pra ir mais gente no mundo botando
enquanto a vida cruel vai vidas ceifando.
E, de certo, ta aí minha única serventia...
Ir parindo gente, senão toda gente morria.

Sou mercadoria barata. Passei dos quinze...
Vou ser enjeitada e velha se passar dos trinta,
sem viver as brincadeiras próprias de menina!
Vivente nos braços de machos desdentados
vendendo meu corpo jovem por uns trocados
no cubículo sujo de fuligem de lamparina.

Minha morada nunca necessitou de trinco.
Se carecerem saciar vontades de instinto
por necessidade sou libertina oferecida
lutando pela vida honrada de meretriz parida.
Se por obrigação e teimosia vivi até agora, 
como o vento, entra quem passar e quiser, 
cobre...emprenha...paga e vai embora...
usando meu corpo de menina feito mulher.

Sai e vai. Falando pouco e deixa quase nada.
Moedas pra farinha e no ventre vida semeada,
que vai nascer neste canto de desencanto,
sem batismo...sem honra...com fome e secura.
Vai viver ao deus-dará comendo calango,
brotos de mandacaru e bunda de tanajura.

Filha de meretriz sou e, da prostituta fome.
De putativo pai. Sem pátria...sem nome...
brotada...cuspida no chão gretado que arde.
Terra sem interesse...sem dono...sem divisão...
sem orada...sem nada...nos confins do sertão.
Aqui não se reza. Deus? Só carece pra covarde.

De prostituta nasci e prostitutas pari, por fim...
Bom destino?...Na vida me foi negado...
Se no porvir for a mim, por pecados, legado
outro inferno, quero não! E me leve logo daqui.
E não fique como gado apodrecendo largada.
Que eu seja enrolada na rede suja e enterrada,
mesmo em cova rasa, por pedido e bondade.

Esta terá sido na vida minha única vontade.
Na paz e por força de quem dá e tira as vidas.
E epitáfio se carecer e escrever alguém puder:
Aqui nesta morada sem janelas está sepultada
Dona Meretriz, nascida: não se sabe quando.
Falecida: uma data qualquer da puta vida.
Neta, filha e mãe honrada de prostitutas paridas.