Mas, sobretudo, grita.
Antonio Miranda Fernandes

Rasga os lençóis.
Rasga como se rasga uma notícia indesejada.
Ouve o eco do teu grito que retorna do vazio.
Maltrata a imagem do que pensavas ser ou foste.
Fecha janelas.
Fecha portas.
Joga no chão o conteúdo de gavetas abertas.
Desarranja cada canto deste mundo.
Delira no desatino do desespero.
Esquece.
Obriga.
Entrega-te a outra mentira se preciso for,
Mas não te cales.
Corre para longe.
Para os braços do alivio comprável a vista.
Engana-te.
Deixa que a chuva te lave por dentro depois.
Assimila os receios, os olhares.
As dores do abandono.
Renuncia aos pesadelos de todos os dias.
Cospe o que não consegues engolir.
Conscientiza-te.
Cada segundo é uma eternidade.
Uma vida.
Um filho.
Uma partida para a eternidade seguinte.
Ela,
A solidão, confortável amiga do abraço pronto,
Engana-te com falsa paz.
Diz-te somente o que pensas querer ouvir.
Envolve-te num silêncio que avocas como teu.
Incolor.
Sem intensidade.
Sem irritantes altas vozes desafinadas.
Quase indolor.
Rasga.
Rasga de novo a pele que queres abandonar.
Não voltes atrás.
Evita o absurdo sentido de retornar a lugares de dor.
A morte não te faz construir.
O que está morto apodrece.
Deve ser enterrado no campo santo da terra.
Esquece.
Apenas tijolos de uma razão enganosa.
Segura a navalha, corta, sangra, esfrangalha.
Rasga os lençóis.
Rasga como se rasga uma notícia indesejada,
Mas, sobretudo, grita.